Em novembro de 1807 Lisboa estava em polvorosa, prestes a testemunhar um dos eventos mais impressionantes até então registrados. Portugal, outrora desbravadora dos mares, pioneira nas grandes navegações, era no início do século XIX uma nação de segunda ordem, impotente frente aos interesses das grandes potências européias. A Revolução Francesa e a posterior ascensão de Napoleão haviam virado os tronos dos monarcas europeus de cabeça para baixo. As monarquias dissolviam-se frente ao turbilhão napoleônico. Nesse contexto, Portugal estava verdadeiramente entre a cruz e a espada. De um lado a Inglaterra, pressionando os portugueses a retificarem a tradicional aliança e relembrando, não obstante, o velho plano de abandonar a territorialidade européia e se instalar – ao menos, temporariamente – na sua mais rica e promissora colônia. Do outro a França, e a exigência de que Portugal aderisse ao Bloqueio Continental. O Bloqueio nada mais era do que uma estratégia francesa no sentido de minar a Inglaterra economicamente, ou seja, nenhuma das nações européias poderia comercializar com os ingleses.
O movimento nas ruas era intenso, os citadinos assistiam a fuga atabalhoada e ignominiosa de algo em torno de 10 e 15 mil pessoas. O inglês Thomas O’Neill que assistiu a cena descreve uma “terrível de confusão e aflição tomou conta de todas as classes assim que se tornou conhecida a intenção do príncipe de embarcar para o Brasil: milhares de homens, mulheres e crianças estavam constantemente na praia, empenhando-se por escapar a bordo. Muitas senhoras distintas entraram na água na esperança de alcançar os botes, mas algumas, desgraçadamente, morreram na tentativa". A Corte, boa parte da burocracia estatal portuguesa, os principais bajuladores e ineptos que rodeavam o então príncipe regente, além de boa parte do tesouro português transladariam o Oceano Atlântico, enfrentariam Adamastor – que já não assustava tanto – e, pela primeira vez na história das monarquias européias, um rei colocaria os seus pés em uma de suas colônias.
A indecisão portuguesa em relação à fuga é revelador das características do próprio príncipe regente. É verdade, não era a primeira vez que se cogita a idéia da transferência da Corte para o Brasil. Há de se destacar, igualmente, que D. João era herdeiro do trono de um país que na verdade não existia no momento, ou seja, a monarquia portuguesa, estava sendo pressionado por ingleses e franceses. Para piorar a situação, D. João era constantemente traído pelos sogros espanhóis e enganado pela mulher, que conspira a todo o momento contra o marido. Igualmente, se aceitasse a submissão a Napoleão, Portugal corria o risco de perder as suas colônias, inclusive, acionando o processo de emancipação no Brasil.
O fato é que os registros não mencionam uma terceira possibilidade: enfrentar as tropas francesas. É possível que D. João VI tenha espelhado em seus súditos a sua própria incapacidade de tomar decisões e proteger o seu reino. Mas é inegável que a sua indecisão e a sua política de uma aparente neutralidade salvaram a monarquia portuguesa das garras de Napoleão. Seja como for, na iminência do embarque as tropas napoleônicas adentravam as fronteiras do reino, e nas águas lusitanas 7 mil soldados ingleses aguardavam ordens, para proteger o comboio português ou então, bombardear Lisboa; nesse ínterim D. João opta pela primeira opção.
Assim, começa o translado que levou a Corte ao Brasil, um evento que mudou a história do Brasil e de Português e a efetiva relação metrópole-colônia. D. João VI em sua política de neutralidade – e, ou indecisão – acabou por enganar Napoleão, mas talvez, a velha utopia de que a partir do Novo Mundo Portugal poderia formatar um poderoso império tenha por um momento encantado o príncipe, que acabou enganando a si próprio: nessa viagem, o ultraje da fuga e a ilusão da Terra dos Papagaios navegaram na mesma embarcação.
As Imagens abaixo retratam o embarque de D. João. A primeira é uma pintura anônima e a segunda e de Nicolas Louis Albert Delerive, 1807-1818. Museu Nacional dos Choches, em Lisboa. Apesar da mudança da corte ser um plano antigo, a fuga aconteceu as pressas, de forma atabalhoada.


Na imagem abaixo Napoleão puxa a peruca de Junot, ex-embaixador francês na França e responsável pela invasão de Portugal, por ter permitido que a família real fugisse.
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